Crônica Urbana — taxações, Trump e o eco da geopolítica

Trump anuncia aumento de tarifas ao parceiros comerciais dos EUA

Hoje, logo cedo, o barulho dos carros e das motos foi abafado por um ruído mais sutil — o das engrenagens da geopolítica rangendo, ajustando seus dentes enferrujados. O comércio abriu, as ruas se encheram, o pão subiu, o dólar oscilou, e entre uma conversa e outra nos botecos e padarias, pouca gente notou: as novas taxações de Trump começaram a valer.

Lá nos Estados Unidos, o velho jogo de proteger a indústria local se repete com a mesma arrogância de sempre, agora travestido de “estratégia econômica”. Mas o que parece novidade para uns, é só o eco de um velho padrão da política internacional: quando uma potência começa a perder hegemonia, ela fecha os portos, ergue as tarifas e culpa os outros pelo que ela mesma não produz mais com eficiência.

Foi assim no século XIX, quando a Inglaterra, então maior império do mundo, adotou medidas protecionistas para barrar a concorrência dos países emergentes. Foi assim nos anos 1930, com os Estados Unidos enfiando o mundo numa espiral de retaliações comerciais durante a Grande Depressão, através da famosa Smoot-Hawley Tariff Act. E está sendo assim agora, com um Trump ressuscitado politicamente, tentando transformar tarifas em trincheiras.


No tabuleiro global, três peças se movem de maneira reveladora.

Primeiro, o blefe caiu. Aquela imagem de potência confiável, defensora da liberdade econômica e do “livre mercado”, derrete como o asfalto de cidade grande ao meio-dia. Ninguém mais confia nos Estados Unidos. A mesma nação que cria instituições multilaterais quando lhe convém, é a que rasga regras quando o jogo vira. O sistema internacional, construído sob liderança americana no pós-guerra, perde sua coerência — e o resto do mundo já entendeu.

Segundo, fica evidente o que muita gente já sussurrava há tempos: os Estados Unidos não são amigos do Brasil. São sócios — e sócios, como bem sabem os camelôs e os microempreendedores dos bairros periféricos, não são necessariamente companheiros de jornada. Desde o golpe de 1964 até os acordos comerciais assimétricos dos anos 1990, o Brasil viveu a dura lição de que aliança com potências nunca vem sem fatura. Amizade exige confiança mútua, e nesse caso, a única fidelidade é à conveniência.

Terceiro, e talvez mais importante: o Brasil vai perder muito pouco com essas taxações. Em curto prazo, sim, exportadores vão chiar, analistas vão escrever editoriais alarmistas. Mas a roda do mundo não gira só em torno de Washington. O tempo, esse diplomata invisível, tratará de reequilibrar o jogo. O que deixará de ir pros EUA, encontrará caminho em portos africanos, asiáticos e latino-americanos. Em cada contêiner barrado, nasce uma oportunidade de diversificação — e talvez até de soberania comercial.

No meio disso tudo, o cidadão comum caminha pela calçada, driblando buracos e promessas políticas. Mal sabe ele que um presidente estrangeiro decidiu o preço da carne que ele vai comprar no mês que vem. Mal percebe que a geopolítica não vive nas salas de conferência apenas — ela escorre pela cidade, pinga no açougue, se deita na gôndola do supermercado, atravessa o semáforo vermelho dos interesses nacionais.

Se há uma lição urbana nessa história toda é que as relações internacionais são como as relações de bairro: há quem diga ser seu amigo, mas que na primeira oportunidade aumenta o preço da farinha ou some com o troco. E, como toda boa vizinhança, o segredo não está em fechar a porta, mas em abrir novas janelas para outros quintais.

Na esquina da geopolítica com a ciência política, o mundo está mudando. E quem entende que taxação também é narrativa, percebe: o Brasil não deve chorar. Deve agir. Com calma, inteligência e uma dose de malícia de vendedor ambulante que sabe que, se a freguesia sumir de um lado da avenida, logo aparece do outro.

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